O dilema do porco espinho
- Eliane Silva
- 19 de dez. de 2022
- 4 min de leitura
Como encarar a solidão

Não é bom que o homem esteja só
Um indivíduo que seja visto jantando sozinho é tido por infeliz, ainda que os casais vizinhos estejam concentrados em seus celulares durante toda a refeição. Será que alguém consideraria seriamente a possibilidade de passar uma noite de Ano-Novo ou de Natal na mais completa solidão? Isso parece pouco provável, não é mesmo?
É quase unânime a ideia de que a solidão se assemelha a um defeito: não existe, em nossa língua, o termo “casadona”, embora seja bastante frequente a utilização do pejorativo “solteirona”.
A mulher e o homem solteiros em sua maturidade, apesar de tudo o que, como sociedade, já conseguimos superar em relação aos papéis fixos e estereótipos, permanecem sendo vistos com certas reservas.
A solidão entre milhões: redes e mundo virtual
Karnal ressalta que a solidão pode servir como ferramenta de um excelente recurso contemplativo e um relevante ponto de crescimento pessoal. O convívio pode ser enriquecedor pelos atritos em si e pelas diferenças.
As redes sociais não propiciam o necessário isolamento para a intimidade densa (e, por vezes, conflituosa) das relações humanas. Em suma, ao navegar nas redes sociais você não enfrenta a diferença e, tampouco, ganha a paz.
A internet que, devido às suas distintas ferramentas de conhecimento, não oferecem o isolamento e a paz suficientes. Como exercício de relação, seu incessante fluxo de anúncios, fotos, mensagens e dados impossibilita que exista solidão na rede.
As fotos, as notificações constantes, as mudanças de telas, as barras de rolagem infinitas e os cliques rápidos são atrativos irresistíveis que levam sua navegação ao que o autor chama de “movimento perpétuo”. Portanto, as redes sociais não estimulam as ponderações produtivas e isoladas que facilitariam a paz.
Em função de sua dinâmica interna, a rede mundial de computadores não é nem um pouco favorável ao desenvolvimento da paz interior. Ainda que você navegue sozinho, terá de lidar com os estreitos limites da internet que, na prática, vem sendo usada como um sofisticado passatempo para amortecer o tédio.
Solidão e livros
Inúmeras vidas solitárias preenchem as melhores páginas da literatura. Isolamentos desafiadores, enlouquecedores, produtivos, reflexivos, vingativos, impostos, conscientes e todas as possibilidades imagináveis.
Em meio a tanta riqueza literária, o maior desafio de nosso autor consistiu em selecionar retratos e histórias de personagens que pudessem demonstrar como é salutar conjugar a criatividade dos autores com a solidão do leitor.
Em cada obra literária é possível encontrar uma luz que o leve a pensar que, talvez, as suas doresnão sejam tão fortes ou, então, que elas possam ser transformadas, denegadas, sublimadas ou aceitas sob outra perspectiva.
Há personagens para imitar ou fugir: todos são didáticos o bastante para evidenciar nossas ambiguidades. Caso uma ou outra leitura não toque a sua alma, restará sempre o prazer de abandonar a solidão por alguns momentos ao ler textos produzidos de modo engenhoso e com conceitos capazes de mudar as nossas mais íntimas concepções.
O Deus da solidão
A solidão religiosa se manifesta, segundo Karnal, mediada pela ideia do abandono. Essa ideia engendra os aspectos básicos e essenciais de muitas tradições religiosas. De fato, são o mais íntimo, o âmago da experiência religiosa. Podemos dizer, portanto, que a solidão é a fundadora das maiores práticas religiosas.
Buda, por exemplo, encontrou a iluminação sentado sozinho debaixo de uma figueira. Jesus Cristo, por sua vez, passou 40 dias no deserto. Maomé também esteve sozinho em uma caverna quando o anjo Gabriel apareceu para conversar. Moisés recebeu, sozinho, os 10 mandamentos.
Diversas figuras importantes das religiões seguiram pelo mesmo caminho, encontrando os desígnios divinos enquanto se encontravam no mais completo isolamento.
Clair MacPherson, escritor e sacerdote católico, afirmava que os profetas mais importantes do Velho Testamento, os sufis na tradição muçulmana, os místicos judeus da Idade Média, os primeiros adeptos do zen-budismo chinês, os primitivos pais cristãos no deserto – todos praticavam ativamente a solidão.
Para o nosso autor, Deus ama os solitários. Embora essa ideia pareça contraditória, é profundamente bela: o Ser que representa a dissolução do abandono, o único capaz de dissolver quaisquer isolamentos e que sempre permanece ao lado da humanidade, no fim das contas, ama o isolamento de seus fiéis.
A imagem do solitário
Karnal introduz a concepção de que a arte é, em si mesma, criadora. Ele defende que é a obra de arte que cria o artista, e não o contrário. Isso se relaciona com a receptividade encontrada por cada obra que, sempre única, cambiante e viva, permanece também sempre solitária.
Cada indivíduo lê e relê as obras e cada releitura traz consigo a descoberta de algo novo que parecia não estar ali antes. Como gênio criativo, a arte possui vida própria. O artista talvez imagine uma intenção, um sentido para a obra que produz, podendo considerá-la pronta e acabada.
Não obstante, a obra resiste ao passar do tempo, engendrando novos significados a cada geração que a interpreta. Não é preciso ir longe para compreender a posição do autor: você já releu um livro que havia adorado?
Às vezes, deixamos de apreciar uma determinada obra durante a sua releitura. Em outras ocasiões, gostamos ainda mais. Esse efeito pode ocorrer pelos mais diferentes motivos. O certo é que somos recriados a cada nova leitura, mudando, tanto nós quanto a obra, a cada reencontro.
Tendo isso em mente, reflita sobre o quanto de solidão está contida na arte. Comece o raciocínio a partir da solidão do artista em seu processo criativo. Uma pessoa pode ser uma notívaga notória, vivendo em festas e rodeada de amantes e amigos, mas, para criar, uma centelha divina deve espocar em sua mente, mãos e coração solitário.
Você pode filmar uma multidão, pintar uma modelo, estar rodeado de ajudantes e colaboradores que, ainda assim, deve existir um tempo próprio da obra e do artista, uma solidão inerente à criação.
As solitárias
Seja pelo parto ou pela nossa expulsão do Paraíso, iniciamos a jornada nesse mundo por meio de um exílio. Por esse motivo, conseguimos nos relacionar com as dores alheias em tais circunstâncias. A humanidade supera a marca de 7 bilhões de indivíduos, isto é, consciências solitárias, incapazes de se dissolverem no outro.
Todos os caminhos percorridos por nossa espécie no passado traduzem-se em uma tentativa de barrar ou criar uma comunicação efetiva com a solidão. Participamos das redes sociais, votamos, lemos, escrevemos, constituímos famílias e produzimos arte a partir da experimentação da solidão sentida de modo inconsciente ou consciente.
Nos separamos e nos casamos motivados por uma solidão individualmente experienciada. É por isso que Karnal afirma que a humanidade é composta de porcos-espinhos, ou seja, de almas e corpos, de agulhas e de frio sempre dizendo saiam/venha, vão embora/aproximem-se, diástole/sístole pendular de tudo o que nos cerca e somos, de tudo o que amamos e tememos.
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